"Tratamento da Enxaqueca como a Cannabis pode ajudar "

Tratamento de Enxaqueca

A Sociedade Internacional de Cefaleia classifica 150 a 200 tipos diferentes de dores de cabeça, entre elas a Enxaqueca, uma condição crônica cuja causa exata ainda permanece desconhecida.
Pode estar associada a uma predisposição genética, mas, alguns fatores como ansiedade, estresse, má qualidade do sono, jejum prolongado, bebidas alcoólicas e alguns tipos de alimentos – como os ricos em açúcar e gordura, os laticínios e a cafeína – são gatilhos comuns para quem sofre dessa doença.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa é a sexta doença mais incapacitante do mundo, caracterizada por uma dor de cabeça unilateral, pulsátil e com intensidade moderada a grave, que tende a piorar ao longo das atividades rotineiras. Ainda segundo a OMS, a enxaqueca afeta 30 milhões de brasileiros, sobretudo do sexo feminino. A baixa dos níveis hormonais no período que antecede a menstruação seria um dos motivos que explica por que 85% dos portadores de enxaqueca são mulheres.

 O diagnóstico da enxaqueca crônica é feito com base no nível da dor e no número de crises, que nos casos mais graves podem chegar a 15 dias por mês ou mais. Os ciclos de dor geralmente variam de 4 a 72 horas.
Importante ressaltar que o uso excessivo de medicamentos para dor é uma das razões que fazem com que uma enxaqueca episódica se torne crônica. Sintomas adicionais também são comuns nesses quadros, como náuseas, vômitos, sensibilidade à luz e ao som, tontura e formigamentos. 
Devido à alta taxa de refratariedade, o tratamento para enxaqueca é frequentemente desafiador e inspira uma série de cuidados prescritivos. Nesse contexto, a Cannabis medicinal vem se destacando como uma alternativa terapêutica promissora, com um histórico milenar de uso para este fim.

O principal destaque é o canabidiol (CBD), devido às suas propriedades analgésicas e anti-inflamatórias, cujos resultados em dores crônicas já são comprovados cientificamente. Outros canabinoides, como o tetra-hidrocanabinol (THC), também vêm sendo alvo de estudos.

Neste conteúdo, falaremos dessas evidências e de como se preparar para incorporar esse importante arsenal terapêutico em sua prática prescritiva, visando trazer mais bem-estar e qualidade de vida para os pacientes que sofrem de enxaqueca.

Histórico do uso de Cannabis para enxaqueca

As pesquisas científicas trazem registros históricos do uso da Cannabis tanto para o tratamento sintomático quanto profilático da enxaqueca entre os anos de 1874 e 1942. As referências etnobotânicas e anedóticas da segunda metade do século XX atestaram o potencial analgésico dos canabinoides para este fim, como relata esta revisão bibliográfica realizada pelo Dr. Ethan Russo, um dos maiores pesquisadores de derivados canabinodes do mundo.

A pesquisa examina a história de uso medicinal da planta pelo fumo e por outros métodos em culturas antigas, incluindo a chinesa, indiana, egípcia, assíria, grega e romana, bem como no mundo islâmico, e sua subsequente adoção pelos europeus da Renascença e da Era Industrial.

As referências mais modernas corroboram a eficácia da Cannabis no tratamento para enxaqueca com base em estudos bioquímicos envolvendo o fitocanabinoide THC e o endocanabinoide anandamida (AEA) – o neurotransmissor endógeno conhecido como “substância da felicidade” – a partir de mecanismos anti-inflamatórios, serotoninérgicos e dopaminérgicos.

Mecanismos de atuação do Sistema Endocanabinoide na enxaqueca

Os estudos envolvendo a Cannabis medicinal ganharam força na segunda metade do século XX, devido às descobertas científicas em torno do Sistema Endocanabinoide (SEC). Esse sistema funciona como um conjunto de receptores, ligantes e enzimas que atuam como sinalizadores entre as células, auxiliando na manutenção e restauração da homeostase do organismo.

Hoje em dia, já existem diversas evidências pré-clínicas e clínicas atestando os mecanismos de atuação do SEC na enxaqueca episódica ou crônica. Um exemplo é esta revisão bibliográfica que associa disfunções do sistema endocanabinoide ao desenvolvimento da enxaqueca e sua cronificação.
Embora a natureza exata dessa relação ainda não seja totalmente compreendida pela Ciência, a revisão traz uma série de estudos os quais sugerem que o SEC é um alvo em potencial das substâncias canabinoides no tratamento para enxaqueca.

Outra referência é esta pesquisa que correlaciona a desregulação do SEC à ocorrência da enxaqueca. A ativação do Sistema Trigeminovascular (ST) e a liberação vasoativa das terminações trigeminais, nas proximidades dos vasos meníngeos, são considerados dois dos principais mecanismos efetores das crises de enxaqueca.

A pesquisa sugere que o SEC é um dos mediadores do ST,  trazendo dados clínicos que mostram que os níveis de anandamida (AEA) estão reduzidos no líquido cefalorraquidiano e no plasma de pacientes com enxaqueca crônica. Essa redução, por sua vez, estaria associada à facilitação da dor na medula espinhal.
Já esta pesquisa publicada no European Journal of Clinical Pharmacology investigou os níveis de serotonina em pacientes portadores de enxaqueca crônica ou que sofrem de cefaleia por o uso excessivo de medicamentos, demonstrando o desequilíbrio do SEC nessas condições.

Para testar essa hipótese, foram determinados os níveis dos dois principais canabinoides endógenos – anandamida (AEA) e 2-araquidonilglicerol (2-AG) – em plaquetas de 20 pacientes com enxaqueca, 20 pacientes com cefaleia e 20 pacientes sem nenhuma dessas condições.
O estudo mediu os níveis de serotonina plaquetária nesses pacientes. Os resultados mostraram que os níveis de AEA e 2-AG foram significativamente mais baixos em pacientes com cefaleia e enxaqueca crônica que fazem o uso de medicamentos do que nos grupos controle.
Esses dados mostram o potencial envolvido na relação entre a disfunção do sistema serotoninérgico e do Sistema Endocanabinoide em pacientes com enxaqueca e outras cefaleias, atestando e o potencial da Medicina Endocanabinoide no tratamento dessas patologias.

Destacamos também esse estudo observacional realizado em 20 mulheres com enxaqueca e 18 saudáveis, tendo como referência suas respectivas idades e índices de massa corporal. A aquisição de imagens pelo método de tomografia por emissão de pósitrons (PET) foi feita 90 minutos após a injeção intravenosa do radiotraçador [18F]MK-9470 para avaliar a ligação da substância ao receptor CB1.
Constatou-se o aumento da ligação do radiotraçador ao receptor endocanabinoide CB1 nos pacientes com enxaqueca em comparação àqueles sem a doença.
Esse aumento foi detectado nas regiões cerebrais relacionadas à modulação da dor – córtice cingulado anterior, lobo temporal mesial, pré-frontal e frontal superior e outras regiões do cérebro – o que indica também, alterações no tônus de funcionamento do Sistema Endocanabinoide nos pacientes do sexo feminino que sofrem de enxaqueca episódica.

Evidências científicas da Cannabis medicinal no tratamento para enxaqueca

Existem ainda outros estudos indicando a diminuição da frequência das crises de enxaqueca após tratamento prolongado com Cannabis medicinal. Esta pesquisa conduzida por cientistas israelenses investigou as associações entre os fitocanabinoides e a frequência de enxaqueca em 145 pacientes (97 mulheres, 67%), com base em questionários auto-relatados.
A duração média do tratamento com Cannabis foi de três anos. Os pacientes foram retrospectivamente classificados como respondedores vs. não respondedores (≥ 50% vs. <50% de redução na frequência mensal de ataques de enxaqueca após o início do tratamento com derivados canabinoides, respectivamente).
Em comparação com os não respondedores, os respondedores (89, 61%) relataram diminuição na frequência da enxaqueca, menor impacto negativo das crises (que foram menos incapacitantes) e menores taxas de consumo de opioides e triptanos.

Vale lembrar ainda que o uso rotineiro e concomitante de quatro ou mais medicamentos caracteriza a polifarmácia – uma importante questão de saúde pública que traz custos elevados para o sistema de saúde e que contribui para a dependência medicamentosa, maior ocorrência de efeitos colaterais e interações medicamentosas adversas. A redução no uso de medicamentos anti-enxaqueca (triptanos) e analgésicos diversos, inclusive opioides, auxilia também na redução da polifarmácia e de seus agravantes.

Quanto à cefaleia por uso excessivo de medicamentos, destacamos esta pesquisa que investigou a eficácia e segurança da nabilona – um canabinoide sintético que se assemelha ao THC – na intensidade e frequência desse tipo de dor.
Nessa pesquisa, foram avaliados 30 pacientes em um estudo cruzado, randomizado, duplo-cego e controlado, comparando o uso de nabilona 0,5 mg/dia e ibuprofeno 400 mg.
Os pacientes receberam cada tratamento por via oral por 8 semanas, com 1 semana de wash-out entre eles. Dos 30 pacientes do grupo, 26 completaram o tratamento. Foram constatadas melhorias no decorrer do uso de ambas as substâncias. Entretanto, a nabilona foi mais eficaz que o ibuprofeno na redução da intensidade da dor.
Além disso, a nabilona contribuiu mais significativamente na redução do uso diário de analgésicos, tendo sido a única substância capaz de reduzir o nível de dependência medicamentosa e de melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Quanto ao perfil de segurança da nabilona, foram observados efeitos colaterais leves, os quais desapareceram depois que o medicamento foi descontinuado

Formulações orais de canabinoides para o tratamento da enxaqueca

Muitos cientistas se dedicaram a avaliar também a eficácia e segurança das formulações orais de Cannabis no tratamento para enxaqueca. Um exemplo é este estudo conduzido por pesquisadores italianos que investigou o uso das formulações FM2®, Bedrocan® e Bediol® no alívio da enxaqueca crônica.
Os pacientes avaliados neste estudo receberam uma das três medicações por até seis meses. Ao longo do tratamento – no início, no terceiro mês e no sexto mês – foram registradas as seguintes informações:

O número de dias de enxaqueca por mês;
A intensidade das dores;
O número de medicamentos para alívio imediato da dor tomados por mês;
O número de dias por mês em que o paciente tomou pelo menos um medicamento para alívio imediato da dor;
Os efeitos adversos ocorridos.


Os resultados mostraram que não houve mudança significativa no número de dias de enxaqueca após o terceiro ou sexto mês de tratamento. Já as demais variáveis – intensidade da dor e consumo de medicação para alívio imediato da dor– diminuíram consideravelmente.
Não foram encontradas diferenças significativas entre os pacientes que estavam em tratamento profilático para enxaqueca crônica e aqueles que não estavam. Os eventos adversos observados foram em sua maioria leves e ocorreram em 43,75% dos pacientes.

Outro exemplo é esta revisão de literatura que avaliou 34 artigos relacionando as interações entre CBD, THC, flavonoides e terpenos no alívio da enxaqueca crônica. Esses ingredientes ativos da Cannabis atuam em sinergia para modular o Sistema Endocanabinoide, otimizando os resultados terapêuticos da planta e minimizando possíveis efeitos adversos.

Os estudos que compõem esta revisão demonstram que o uso da Cannabis medicinal é eficaz para reduzir a duração e a frequência da enxaqueca e de outras dores de cabeça de origem desconhecida, atestando, portanto, o potencial sinérgico das substâncias da planta no combate a esse tipo de dor crônica.

Além da enxaqueca e da cefaleia, outras síndromes de dor crônica faciais foram avaliadas nesta revisão de literatura que também considerou a interação entre os canabinoides, terpenos e flavonoides da Cannabis nos efeitos terapêuticos sinérgicos da planta.

Os estudos avaliados nesta revisão atestam as propriedades analgésicas e anti-inflamatórias dessas substâncias, bem como, o potencial da Cannabis na desintoxicação e desmame de opiáceos – o que é de grande relevância considerando-se a alta taxa de dependência e efeitos colaterais associados a esses medicamentos.

Vaporização da flor de Cannabis no manejo da enxaqueca

Destacamos ainda este estudo norte-americano pioneiro na avaliação da eficácia do uso da flor de Cannabis no tratamento para enxaqueca. Esse é o tipo de produto de Cannabis mais consumido nos Estados Unidos. No estudo, foram consideradas as diferentes características do produto e as mudanças na intensidade dos sintomas da enxaqueca após o uso.
O período de avaliação foi de três anos, abrangendo 699 pessoas que registraram no Aplicativo Releaf os detalhes em tempo real do uso de Cannabis em relação à intensidade dos sintomas de dor – antes e após a autoadministração do produto. Os dados incluíram 1.328 sessões de uso para tratar cefaleia e 582 sessões de uso para tratar enxaqueca.
As alterações nos níveis de dor foram medidas em uma escala de 0 a 10 antes e imediatamente após o consumo de flor de Cannabis. Os resultados apontaram que 94% dos usuários experimentaram alívio dos sintomas dentro de uma janela de observação de duas horas.

A  redução média da intensidade dos sintomas foi de 3,3 pontos, com os homens experimentando maior alívio do que as mulheres. Os usuários mais jovens (< 35 anos) também experimentaram maior alívio em relação aos mais velhos.
Além disso, os produtos com níveis de tetrahidrocanabinol superiores a 10% foram os mais fortes preditores de alívio dos sintomas.
Esse efeito, por sua vez, mostrou-se mais preponderante nas cefaleias do que na enxaqueca crônica. Os resultados apontaram ainda que mulheres e usuários mais jovens obtiveram maior alívio dos sintomas ao utilizar flores rotuladas como Cannabis indica em vez de Cannabis sativa.

Sobre os efeitos de curto e longo prazo do uso da Cannabis medicinal no alívio da enxaqueca, destacamos esta pesquisa norte-americana que avaliou os mecanismos de ação dos canabinoides CBD e THC ao longo das crises.

As evidências se basearam em dados coletados por um aplicativo de Cannabis medicinal que permite aos pacientes registrarem os sintomas antes e depois de utilizarem diferentes doses e quimiovariantes da planta. Avaliaram-se dados de 12.293 sessões em que a Cannabis foi utilizada para aliviar dor de cabeça e 7.441 sessões em que a Cannabis foi utilizada no tratamento para enxaqueca.

Os resultados mostraram que houve reduções significativas nas classificações dos dois tipos de dor após o uso dos canabinoides.  Os pacientes do sexo masculino apresentaram maiores percentuais de alívio das dores do que as pacientes do sexo feminino. Além disso, os produtos concentrados tiveram uma eficácia maior em comparação às flores de Cannabis.

Os registros indicaram que a Cannabis inalada foi capaz de reduzir a intensidade das dores de cabeça e da enxaqueca em cerca de 50% dos quadros. No entanto, os pesquisadores salientam que a eficácia do tratamento tende a diminuir no decorrer do tempo, sugerindo uma possível tolerância aos efeitos dos canabinoides em longo prazo.

Ao longo deste conteúdo, reunimos evidências científicas promissoras quanto ao uso da Cannabis no tratamento para enxaqueca. Conforme as pesquisas científicas avançam e alcançam melhor qualidade metodológica, mais a comunidade médica compreende a necessidade de se preparar para prescrever canabinoides de forma segura e assertiva, potencializando os resultados terapêuticos e minimizando os efeitos adversos.

Todos os créditos deste  conteúdo á WeCann Academy
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